Sou um obcecado. Um fissurado. Um viciado em determinados temas, que não são poucos. Sou muito nerd em assuntos do meu interesse. Minhas obsessões são renovadas automaticamente de tempos em tempos. Sem planejamento, nem contrato assinado. Evito usar o termo “hiperfoco”, de tão esvaziado pelas redes sociais.
Consigo passar horas falando de Fórmula 1. Se puxarem papo sobre história do futebol, vou longe. Meus conhecimentos e lembranças sobre televisão aberta estão bem acima do saudável. Conto fatos e cito datas sobre essas obsessões com precisão constrangedora. Minha vida profissional me faz acompanhar a literatura de perto, então posso indicar um livro para cada pessoa próxima, de acordo com o perfil, o estilo, as manias. Faz parte, faz parte.
Amizades ligadas aos livros devem me achar um chato por tanto falar sobre David Foster Wallace, autor de Graça infinita, O rei pálido, Breves entrevistas com homens hediondos e Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo, que além de ser um livraço, tem um belíssimo título. Já as amizades não ligadas aos livros devem me achar um chato por outros motivos.
Dois peixinhos estão nadando e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrária, que os cumprimenta e diz: “Bom dia, meninos. Como está a água?”. Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta: “Água? Que diabo é isso?”.
Esse é o começo de “Isto é água”, discurso de paraninfo no Kenyon College em 21 de maio de 2005 proferido pelo DFW, sigla muito usada por leitores mais íntimos. Recomendo demais a leitura, mesmo que o texto seja usado como pretexto para autoajuda barata. Faz parte, faz parte.
Os dois peixinhos mostram a importância de observar o mundo ao redor para os recém-formados. Vinte anos depois, num tempo de hiperconexão, o conselho segue válido. O famoso discurso também trata da importância de não se achar o centro do mundo. Às vezes, o pessoal meio coach da positividade tóxica usa esse texto para justificar um jeito meio torto de interpretar o mundo. Tudo bem. Depois de publicado, o texto é do mundo. E esse vale demais ser lido
Dentro da água, tem muita coisa ao redor. Fora dela também.
Em novembro de 2023, quando voltei para a natação, sabia antes da primeira aula que não existia a menor hipótese de não ficar obcecado pelo esporte. Beleza, sou obcecado por esportes. (Não tanto a prática, tenho problemas de coordenação motora; sou viciado nas histórias, nas datas, nas lembranças de fatos marcantes me guiando em anos de Jogos Olímpicos ou Copas do Mundo. Sou estranho, sou esquisito, sou excêntrico!).
Minha obsessão pela natação não vem de hoje. Até 2013, não tinha a menor noção de como dar braçadas e bater pernas embaixo d’água. Precisei de preparação para uma delicada cirurgia na coluna, fui obrigado a estrear no esporte. Depois de colocar 23 parafusos, duas talas e duas travas nas costas, passei uns quase dez anos sem pular nas piscinas até me sentir bem acordando às cinco da manhã para a prática esportiva matinal antes do expediente.
Nesse meio tempo, fui um corredor de rua dedicado. Comecei com um treinamento basicão, elaborado pela ex-namorada de um amigo, formada em educação física e em gentileza. Fui feliz nos cinco quilômetros, duas vezes por semana. Me senti ousado quando aumentei para sete quilômetros, três vezes por semana. Sucessivas crises de ansiedade depois de uma demissão me renderam os primeiros dez quilômetros, num tempo em que aprendi a me disciplinar para pensar quilômetro a quilômetro, olhando mais para a jornada do que para o final.
Porque correr é pensar. Nos tempos mais ansiosos, depressivos ou ansiosos e depressivos, quase dava para ver os pensamentos disfuncionais indo embora junto com o suor, ficando para trás e sendo pisados por passadas largas.
Diferentemente da corrida, a natação não permite ver pensamentos disfuncionais indo embora. Na piscina, não dá tempo para pensar. Pensar atrapalha os movimentos. O foco precisa estar direcionado para as pernas batendo, os braços girando na água e a cabeça girando para respirar fora dela. Sem espaço para distrações mentais.
Entre decidir a volta para a natação, planejar (não é a mais barata das atividades físicas), fazer uns exames periódicos, me matricular e recomeçar as aulas, levei uns meses. Mas esse retorno é sempre curioso. Parecia que eu tinha nadado pela última vez anteontem.
Eu não era sedentário, mas nunca parei de beber doses de arrogância, capaz de me convencer que seria um retorno tranquilo, porque o fôlego para as corridas semanais faria muita diferença embaixo d’água. Besteira, autoengano. Os primeiros três meses foram de adaptação. Me senti voltando para casa. No começo, o intuito era nadar duas vezes por semana e correr aos sábados. Em poucos meses, esqueci as passadas largas na rua e aumentei para três os dias debaixo d’água de manhãzinha.
Acordar quando o sol ainda dorme, arrumar a cama, trocar de roupa, escovar os dentes, limpar a sujeira dos bichos, tomar um café da manhã, caminhar pouco mais de um quilômetro até a academia. Dar bom dia para as recepcionistas, passar pela catraca, passar pelo corredor, olhar a piscina da hidroginástica, entrar no banheiro, tirar a camisa e a bermuda, colocar a touca, ajeitar a sunga, puxar os óculos da mochila, tirar a garrafa d’água da mochila, sair do banheiro, passar pelo corredor, deixar a mochila na escadinha na beira da piscina, dar bom dia para o instrutor, pular na piscina, dar bom dia para os colegas de raia, ouvir do instrutor o treino do dia, começar o treino do dia.
Pode ter um preço salgado, mas vale a pena. Na esquina de casa, a entrada e saída de alunos na grande rede de academias parece uma balada. Entre aparelhos da musculação, sinto um clima de comparação e julgamento contra quem pega menos peso e insiste em estar ali meramente por questões de saúde, sem a busca de Sísifo pelo suposto corpo perfeito.
É ruim dividir a raia com muita gente? É, é sim, é um pouco. Mas com paciência e foco no treino, e só no treino, sigo. E ninguém liga se você dá braçadas muito rápidas, ou se respira apenas na sexta braçada. Não é balada, não é musculação. Não é a micareta do crossfit. Para quem não sabe nadar, não precisa ter medo. A primeira raia, a da direita, está ali para isso, com pranchinha e boias à disposição de crianças, jovens, adultos e idosos.
Natação é a minha praia, mesmo sem nadar na água da praia. Moro numa cidade com praia. Gosto de morar numa cidade com praia, mas não sou obcecado pela minha cidade. Nem pela praia. Talvez eu seja obcecado por natação. Talvez.
Toda semana, e até mais que um dia por semana, recebia diferentes convites para disputar corridas de rua. Para me testar, para conferir meu ritmo, para supostamente me divertir vendo gente pintada e fantasiada dando tchauzinho na direção das câmeras. Porque não encontravam sentido em treinar por treinar, porque não parecia saudável eu correr sozinho, porque era preocupante correr sem marcar no aplicativo de corridas o tempo das corridas e comparar com outros tempos de corridas, porque eu tinha que perder o possível medo de estar no meio de uma multidão largando em horários diferentes para não ficar dando passinhos de tartaruga para não atropelar quem estivesse à minha frente.
Eu não queria. Simples assim. Corria pela saúde física e mental, para fugir do sedentarismo, para exercer a mobilidade e a consciência do corpo. Corria para mim. Não quero competir, me sinto bem assim. O esporte individual é um momento de solidão, de concentração, de quase meditação. Talvez, de oração. De reconexão espiritual.
Quero isso porque preciso disso. Preciso disso porque quero isso.
Com a natação, não é diferente. Me acham louco por nadar às sete e pouco da manhã. Me julgam esquisito por nadar às sete e pouco da manhã em dias de chuva. Me olham com espanto por nadar tão cedo em pleno inverno. Me questionam por que não disputo provas no mar, tomando cotoveladas embaixo d’água. Me indicam dietas mirabolantes para que a prática da natação traga modificações não solicitadas no meu corpo. Me perguntam por que nado, por que não combino com a musculação nos dias de descanso, por que me conformo com a atividade física sem o pensamento utilitário de fazer disso um otimizador da produtividade.
Só quero nadar. Quando justifico esse gosto despretensioso e transformador pela natação, me sinto um peixe mais velho, respondendo com sabedoria para peixinhos nadando em sentido contrário: isso também é água.
Nos últimos seis meses, escrevi a newsletter Travessão, cruzando literatura e futebol. De vez em quando, vou dar as caras por aqui com uns ensaios mais extensos que as crônicas de segunda-feira do Tirei da Gaveta, blog nascido antes do Substack. Lá, você pode baixar os PDFs dos meus três primeiros livros. De graça! Meu 4º livro, ainda não esgotado, pode ser encomendado pelo e-mail marcal_91@hotmail.com. E nos próximos meses, lanço minha 5ª publicação. No meu perfil no Instagram e no próprio TdG, vou atualizando!
Estou ensaiando um novo retorno às piscinas esse ano e ele provavelmente vai acontecer amanhã (!) e lendo seu texto fiquei pensando em como nado pelo mesmo motivo que você. Inclusive aproveito que sou sócia de um clube pra ir nadar na raia ou piscina livre sem professor e nem nada. Eu monto meu próprio treino de acordo com o que meu corpo pede.
Eu só quero nadar. Não quero competir, buscar melhorar cada vez mais colocando metas no meu nado e tals. Eu só quero dar minhas braçadas e pernada, é lógico que tento fazer umas estripulias quando sinto que está na hora de dar uma evoluída, mas o meu objeto é nadar, porque a natação faz bem pra mim. Ela me ajuda a respirar melhor, evita crises alérgicas, melhora a minha sinusite crônica, diminui minha ansiedade e me faz me sentir viva. Tenho mais ânimo quando nado, por isso quero tanto voltar.